PEPITAS DE OURO DA ESTRADA DA VIDA - HISTÓRIAS DA TRINDADE - O CÃO LEÃO (vulgo Rôlôlô)
O CÃO LEÃO (vulgo Rôlôlô)
Fto. Internet (cão muito parecido ao cão Leão)
INTRODUÇÃO
No final dos anos 1940 e início da década de 1950, minha família residia na Trindade – lugarejo à margem direita do rio Mearim, distante cerca de 12 Km da pequena cidade maranhense denominada Pedreiras – para onde se havia transferido entre o final de outubro e início de novembro de 1938.
Apesar das dificuldades e da nossa luta, a vida ali era muito alegre e dinâmica, principalmente no verão, por causa das atividades do engenho: a fabricação de assucar, de rapadura e de aguardente de cana. Esta tinha um nome bem sugestivo: Embora fosse preferentemente fabricada durante o verão, chamava-se Primavera.
Fto. internet (muito similar ao Engenho da Trindade) |
A família do Sr. José Bello (meu pai) vendia a Primavera para revendedores da cidade de Pedreiras, os quais a engarrafavam com alguns aditivos, para depois revendê-la em outras cidades, geralmente, rotulada com nomes diferentes, tais como: Rainha-da-Farra, Rabo-de-Galo e Três-Tombos.
Em meio à adocicada euforia dos trabalhos com a cana-de-assucar, eu crescia cheio de energia, um menino inquieto, especulativo, e vivia intensamente as atividades, seja no ambiente familiar ou na laboriosa e animada casa do engenho.
Conviviamos com muita gente de fora, trabalhadores braçais, em geral, nordestinos, como nós; eles provinham das mais diversas origens e eram familiares, aparentados, amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos, da família. Muitos deles fixavam residência na Trindade, atraídos pela possibilidade de ganhar algum salário no trato com a cana-de-assucar e, até, constituíam família no lugar e adquiriam, de alguma forma, um pedaço de terra para cultivar, especialmente, fora da temporada de funcionamento do engenho e da industria da cana.
Conviviamos com muita gente de fora, trabalhadores braçais, em geral, nordestinos, como nós; eles provinham das mais diversas origens e eram familiares, aparentados, amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos, da família. Muitos deles fixavam residência na Trindade, atraídos pela possibilidade de ganhar algum salário no trato com a cana-de-assucar e, até, constituíam família no lugar e adquiriam, de alguma forma, um pedaço de terra para cultivar, especialmente, fora da temporada de funcionamento do engenho e da industria da cana.
Naquela época, havia em nossa casa um cachorro chamado Brasileiro. Ele morreu bem velhinho, quando eu tinha ainda doze anos. Isto eu não conseguia compreender direito porque diziam que Brasileiro tinha a minha idade.
Ainda uma criança, eu via Brasileiro envelhecendo e não entendia a razão de sua existência tão efêmera.
Eu vi Brasileiro perder os dentes, ficar cego, caminhar e alimentar-se movido apenas por seu faro aguçado; e, ainda, abocanhar fortemente um frango que, no chão da cozinha, teimava em roubar-lhe a refeição.
Eu vi Brasileiro perder os dentes, ficar cego, caminhar e alimentar-se movido apenas por seu faro aguçado; e, ainda, abocanhar fortemente um frango que, no chão da cozinha, teimava em roubar-lhe a refeição.
Aos doze anos, eu ainda observava o espaço de minha gengiva de onde ainda esperava surgirem meus dentes queiros (dentes do siso).
Enquanto isso, o amigo Brasileiro, aos doze anos, já não tinha, sequer, um dente para registrar sua mordida.
Felizmente, ele ainda podia machucar bem os alimentos com suas fortes mandíbulas.
Seu latir já não era mais rau-rau-rau, fazia apenas bau-bau-bau. Pois, faltava-lhe domínio sobre os lábios frouxos, as bochechas flácidas e sobre as, já preguiçosas, membranas bucais.
Enquanto isso, o amigo Brasileiro, aos doze anos, já não tinha, sequer, um dente para registrar sua mordida.
Felizmente, ele ainda podia machucar bem os alimentos com suas fortes mandíbulas.
Seu latir já não era mais rau-rau-rau, fazia apenas bau-bau-bau. Pois, faltava-lhe domínio sobre os lábios frouxos, as bochechas flácidas e sobre as, já preguiçosas, membranas bucais.
Hoje, entendo que a idade de doze anos para um cão do porte do meu amigo Brasileiro equivale, em média, a cerca de noventa anos de um ser humano normal.
Havia também um cão chamado Lobo que tinha mais ou menos a mesma idade do Brasileiro. Ele se foi mais cedo. Pertencia ao grupo de cães-de-caça do meu primo e cunhado Raimundo Quinco que, de vez em quando, reunia uma força-tarefa especial com a parentela e uma grande cachorrada, para uma caçada noturna na floresta da morraria silenciosa e erma da região.
Dentre os principais membros desta força-tarefa de caçadores da Trindade estavam o meu cunhado Raimundo Quinco, seu cunhado Amaro Teixeira, meus irmãos Antonio e Sinhô Bello, e o Sr. Zé do Dico, um dos vizinhos e colaboradores mais próximos e disponíveis.
Zé do Dico e sua parentela formavam uma turma boa para a caçada. Dentre eles, destacavam-se: o Santana, o Damião, o Doca e o Lulu.
Dentre os principais membros desta força-tarefa de caçadores da Trindade estavam o meu cunhado Raimundo Quinco, seu cunhado Amaro Teixeira, meus irmãos Antonio e Sinhô Bello, e o Sr. Zé do Dico, um dos vizinhos e colaboradores mais próximos e disponíveis.
Zé do Dico e sua parentela formavam uma turma boa para a caçada. Dentre eles, destacavam-se: o Santana, o Damião, o Doca e o Lulu.
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Sei da ansiedade que estou causando com a demora da abordagem do tema proposto: a história do cão Leão (vulgo Rôlôlô). Já chegaremos lá…
Era preciso primeiro delinear o ambiente em que tudo se desenrolou.
Era preciso primeiro delinear o ambiente em que tudo se desenrolou.
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O Brasileiro era meu amigão. A gente tinha a mesma idade e muita intimidade. Ele se deixava apreender por mim e, até, se permitia encangar, atrelar, ao gato; algo que acontecia em circunstâncias as mais inimagináveis, como na hora da reza do terço, à boca-da-noite, à luz da lamparina.
É!…
Cachorro não reza mas, sabe silenciar e prestar muita atenção!…
É!…
Cachorro não reza mas, sabe silenciar e prestar muita atenção!…
O inesperado atrelamento de um cão a um gato, dois tradicionais inimigos, em momento de tão elevado recolhimento, certamente haveria de promover um inusitado e indesejável espetáculo. Interromper a concentração com uma briga de cão e gato, em hora tão sagrada de recolhimento, era tudo o que Dona Maria da Conceição, minha mãe, se quer, poderia imaginar.
_ Ave Maria!… Que menino traquino!… bradava ela, no meio da oração...
E arrematava:
_ Perdão, meu Deus!…
_ Desculpe, minha Mãe Santíssima!…
_ Perdão, meu Deus!…
_ Desculpe, minha Mãe Santíssima!…
O CÃO LEÃO (VULGO RÔLÔLÔ)
Fto internet. (um cão parecido)
Quando Brasileiro ainda era vivo, Doma Maria da Conceição recebeu Rôlôlô de presente de um pescador chamado Lourenço, que residia no lugar denominado Alto de Areia, nas barrancas do rio Mearim.
Rôlôlô era um cão graúdo, bonito, alvacento, estruturalmente forte, principalmente, porque fora criado com restos de peixe assado, pirão de farinha de mandioca e carne de animais silvestres.
Quando conheci o Sr. Lourenço, lá no Alto de Areia, seus cabelos já eram grisalhos. Morava ali nas barrancas do Merim, com sua família.
Viviam principalmente da pesca, da quebra do coco babaçu e de algumas plantações.
Durante o verão, vinham oferecer seus serviços nas lidas da cana-de-assucar.
Eu, às vezes, aparecia por lá, seguindo os rastros de alguma mula desgarrada que, para escapar da rotina do engenho, das moscas varejeiras e das mutucas sanguinárias – comuns naquelas pastagens – embrenhavam-se no matagal circunstante alcançando, às vezes, a morada do Lourenço e causando, até mesmo, algum estrago em suas plantações.
O hábito de tomar uma “caninha” tornava o Sr. Lourenço nosso assíduo visitante, ocasião em que aproveitava para comprar também um quilo de assucar, rapaduras e algum outro produto agropecuário, ocasionalmente existente no engenho. E, às vezes, trazia para nos vender alguns produtos de suas pescarias tais como: surubim, piau, curimatã, traíra, mandi, corró, cachimbo e etc.
Lourenço deu o nome Rôlôlô ao seu cão, por uma simples razão: era uma palavra mais fácil para ele pronunciar.
Acontece que Lourenço tinha um problema congênito de dicção: seu lábio leporino impunha-lhe restrições à fala, especialmente em momentos de aflição, quando precisava chamar e açular apressadamente os cães contra algum intruso, na calada da noite.
Para o Sr. Lourenço, era mais fácil gritar: “Ki-Kii!… Rôlôlô!… ” do que “Ki-Kii!… Leão!…”
E o cão, certamente, saberia fazer a distinção.
Esta era a maneira de se comunicar com os cachorros, naquela parte do Brasil, do Maranhão.
Era comum alternar o “Ki-Kii!… com assovios apropriados. E os cães prontamente atendiam, vinham ao ataque...
Não sei bem como se deu a negociação, mas fato é que o Rôlôlô veio habitar conosco, fazer parte da família.
Só teve que receber novo batismo. Minha mãe o ganhou do Lourenço e lhe deu o nome de Leão.
Assim, o engenho passou a contar com a dupla Brasileiro e Leão, seja para auxiliar na caça ou seja para espantar raposas e mocuras no poleiro das galinhas.
Leão ficou conosco fazendo história não sei por quantos anos.
Certo dia, meu irmão Antonio observou que uma raposa estava comendo e danificando os cachos de bananas, em um bananal próximo da nossa casa.
Então, ele deliberou armar um laço para pegar a tal raposa no fraga, coisa que ele sabia fazer com maestria.
Pois bem!…
Antonio preparou uma armadilha: uma isca – uma banana madura espetada – dentro de um pequeno círculo de varas finas enfiadas ao chão; e com um laço forte de corda sobreposto. O laço estava preso à ponta de uma potente vara flexível de juruparana, arqueada, e com a outra ponta fixada ao chão, à distância.
Estava pronta a armadilha para pegar a raposa ladra ou qualquer outro animal comedor de bananas das silenciosas noites de luar da Trindade.
No dia seguinte, meu irmão apressou-se para verificar a armadilha e foi surpreendido pelo barulho e pelo que avistou de longe: um animal enorme havia caido no laço e ainda estava vivo porque era muito pesado e por isso, podia tocar com as patas traseiras ao chão e aliviar a pressão da corda sobre a jugular, premida pelo peso do copo.
O pesado animal não era outro senão o Leão (Rôlôlô). Ele só escapou porque a vara era para um animal menor, com cerca da metade do seu peso. A vara vergou demais e ele salvou-se tocando com as patas traseiras ao chão, numa dansa noturna desesperada, dentro do bananal, tentando escapar do laço infernal.
Acredito que o Leão veio farejando a raposa que o precedeu nas proximidades da armadilha.
Assim, provavelmente, a raposa o enganou e o encaminhou ao laço.
Leão salvou a vida da raposa e acabou caindo na armadilha que farejou.
Afinal, o Leão não estava à procura de uma refeição de banana, era a raposa que ele seguia!...
Para mim, naquela época, as noites da Trindade se faziam assombrosas, especialmente na fase de lua nova.
Diziam que a noite de lua nova era noite de cachorro doido.
Eu sempre procurei me superar na luta contra meus medos mas, às vezes, a coisa fugia do controle e eu procurava dissimular apelando para a ajuda dos meus tradicionais amigos: Brasileiro e Rôlôlô.
Certa noite sem luar, por volta das oito horas, já havíamos jantado e rezado o terço e, quando nos preparávamos para dormir, eis que chegou um parente nosso (um visitante); ele veio com uma montaria e, para que tudo se arranjasse dentro dos conformes, sobrou para mim ir levar o cavalo do visitante ao pasto.
Eu não podia fazer feio...
Naquelas horas, tomei o animal pelo cabresto e segui firme e resoluto pelo caminho de roça, na meia encosta da colina, atrás da casa; seguindo, depois, o caminho do poço, atravessei um igarapé, e, já no pasto, facilmente encontrei um tronco robusto onde amarrar o cavalo a pastar, graças a um tímido luar.
Para tanto, o cabresto do cavalo foi acrescido de uma longa e resistente corda-de-cabo que eu firmemente havia trazido, enrolada no ombro de criança – era o que iria permitir ao animal maior liberdade de circulação no pasto, na busca da bendita refeição - naquela noite de quase breu, da Trindade.
Na ida, o medo não foi tanto afinal, eu estava acompanhado do cavalo e tinha as costas voltadas para a casa; porém, depois de tudo feito, e já voltando, agora sozinho, o medo era notável, chegando quase ao insuportável. Não tinha lanterna ou lamparina e me dei contas de que também não poderia apressar demais o passo porque o medo sairia do controle.
Andando, agora, com as costas viradas para o mato e sem a cavalar companhia, tentei controlar o medo, enquanto equilibrava os passos entre caminhando e correndo...
Já havia percorrido a metade da distância de volta. De repente, senti um arrepio generalizado no corpo que me forçou a apressar mais ainda o passo. Quase perdendo o controle, pensei em assoviar, mas não consegui, resolvi fazer qualquer barulho, cantar, gritar, para espantar o medo.
Que barulho fazer? ...
Foi então que me decidi a gritar pelos cachorros.
A primeira palavra que consegui gritar foi:
Kii-Rôlôlô!…
Mas, minha voz embargou e quase perdi o fôlego. Só consegui emitir um grito esquisito que me causou mais medo ainda.
Graças a Deus, pude me acalmar ao ver, ao longe, o clarão da lamparina projetado pelo vão da janela da cozinha.
Foi mesmo um grande sufoco!...
Ao entrar em casa, ainda tive que enfrentar a zombaria de meus irmãos; eles me haviam ouvido o pavoroso grito brotado da escura solidão, quando aflito, açulava o amigo Rôlôlô, por minha mãe, rebatizado de Leão.
Leão (vulgo Rôlôlô) parecia feliz em nossa companhia. Trocar a lida de pescaria na silenciosa solidão das barrancas do Mearim, em companhia do Lourenço (seu primeiro dono), pela vida agitada da barulhenta casa do engenho, foi uma grande evolução, em sua lida de cão.
Mas, parecia feliz o Leão!…
No entanto, surgiu nova oportunidade de aventura e de aprendizagem para ele.
Certo dia, recebemos na Trindade a visita do Sr. Chicuta, um compadre dos meus pais que possuía uma fazenda de gado leiteiro do outro lado da cidade, no lugar denominado Barriguda (nome de uma árvore).
Conversa vai, conversa vem, no meio daquela alegria da visita do compadre Chicuta, saboreando um cafezinho com pão-de-arroz e broa-de-milho, e também as lembranças da comadre Maria e do afilhado Zequinha, um menino já crescidinho, eis que o cão Leão tornou-se centro da especulação.
Minha mãe, talvez, querendo ser agradável e, considerando as dificuldades do compadre com o rebanho bovino, ofereceu o Leão de presente ao Sr. Chicuta que, feliz, o levou dali com a perspectiva de torná-lo um auxiliar de vaqueiro.
E o Sr. Chicuta, em sua montaria, levou meu amigo Rôlôlô puxado por uma corda enrolada ao pescoço.
Era mais uma desmedida aventura para o cão que havia migrado da pescaria às lidas do engenho e, agora, para o posto de cão vaquejador.
É!… Vi meu amigo Leão ser conduzido, contra a vontade, para as terras da Barriguda, lugarejo além da cidade de Pedreiras, em direção ao Bom Jesus.
Mas, Leão não gostou da nova profissão. Ele foi empossado no domingo e já na segunda-feira se havia demitido, E estava de volta à Trindade, lugar que escolheu para viver, mesmo tendo de contrariar as ordens de Dona Maria da Conceição.
E ficou para todos uma lição: é preciso respeitar o querer dos animais; pois, nem sempre, eles podem e querem viver conforme a vontade de seus donos.
Eu, hoje, com a graça de Deus, estou caminhando para os oitenta. E, se me for dada a graça de viver tanto quanto viveu o cão Brasileiro, ainda terei dez longos anos por viver, sobre este chão que Deus abençoou e me permitiu viver.
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